Nosso caminho se recomeça no sertão.
Pedra Branca é uma cidade do interior do Ceará escondida numa serra encantada no centro do estado. É também lugar de origem, esconderijo inspirador e colo de natureza viva.
Aqui nasce nossa força e desejos de adoçar a vida com mel de cana e leite de coco. Todo fim de janeiro pra começo de fevereiro, faço o caminho do mar pro sertão pra comemorar a colheita das frutas. É também o tempo dos aniversariantes de aquário, onde nos últimos dias do mês sempre tem festa e bolo de milho pra comemorar os parabéns do Sr. Aparecido, meu pai.
Andar pelas beiras de açude no meio da mata inspirou profundamente os sabores e criações da nossa safra de fevereiro, sair pela caatinga ainda verdinha das primeiras chuvas do ano pra catar catolé e buscar o gado, foi de encher os olhos e comemorar os ciclos da vida e da terra.
entrada da mata encantada
ninho de João de barro na mata da caatinga cearense
mata encantada de Pedra Branca - CE - vô e neta indo buscar o gado
vista do açude após sair da “selva” como meu pai chama a mata fechada na caatinga
No final de 2022 passamos por muitas dificuldades por causa de problemas de saúde, meu pai ainda está em tratamento do câncer de rim, meu companheiro se recuperando de uma isquemia cerebral e eu de uma segunda parada cardíaca. Esse coração de cozinheira é forte viu! E que bom é continuar a seguir nossa caminhada com amor e coragem sempre se cuidando e se ajudando quando a maré for turbulenta. Poder iniciar o ano e o campo renovando o caminho das águas e em meio a esses festejos da colheita, trás muita emoção e sorte grande pras jornadas da vida.
Maria comilona de morangos. O bolo tinha recheio de cocada a pedidos de Dona Kátia para o aniversariante.
A colheita das frutas aconteceu no mesmo domingo do almoço de aniversário do meu pai. Em Pedra Branca a comida tem grande importância pro seu povo. Fartura é sinônimo de casa cheia de gente, pois o nosso jeito de comer é sempre coletivo e compartilhado. As receitas são trocadas não só por oralidade ou no papel, mas também no envio de uma vasilha com a comida recém feita em demonstração de afeto, alegria e gratidão a terra por gestar aquele alimento.
A porta de entrada das casas é sempre pela cozinha, o lugar mágico onde as conversas giram em torno do fogo pois pode ter sempre a certeza que alguma coisa está ali se fazendo, panelas com histórias que vão apurando temperos e soltando cheiros. É lugar e porta de entrada pra muitas outras histórias de comida e da vida dos nossos ancestrais.
Depois do almoço a sobremesa foi todo mundo colher frutas! Lógico que antes teve um agrado doce pra boca: goiabada molinha ainda morna feita no dia pela Dona Kátia e as sobras em pedaços do bolo de aniversário só que geladinho, o recheio de cocada apurou e junto da cobertura de chocolate ficou parecendo um prestígio.
A colheita e a quebra do catolé aconteceu no fim de tarde no sábado e no domingo, foi a coleta coletiva das frutas da época: manga doce feito mel, siriguela vermelha, goiaba amarela, araçá e limão siciliano. (sim, pasmem! O dedo verde da minha mãe conseguiu vingar esse limão em plena serra na caatinga. Depois vou escrever um artigo no blog sobre as mudas de limão galego que fiz e os estudos sobre o cultivo e as histórias das frutas cítricas). No final da colheita todo mundo compartilhou os frutos e contemplou a mata e o canto dos pássaros debaixo da mangueira. São memórias do viver, coisas do existir no interior que o tempo do gosto sempre vão nos pertencer e prosperar.
pé de siriguela na beira do açude.
goiaba e maxixe achado na mata
Pegando goiabas com Tia Euma, a dona do melhor vatapá de pão de Pedra Branca.
Nós debaixo do pé de manga: Elvis meu irmão, D.Kátia minha mãe, Davi meu companheiro, meu primo Caio e eu.
pé de limão siciliano “selvagem”
Pé de Araçá, uma descoberta linda nesse campo.
no tacho: doce de goiaba com araçá, folhas de limão, flor e folha de cidreira
pé de catolé também conhecido como coquinho ou coco-babão
O Catolé é uma das várias, entre os 24 gêneros e mais de 100 espécies de coqueiros nativos e genuínos do Brasil. Espécie nativa do Ceará, é o coco da infância do meu pai e de muita gente do Nordeste. Também é o fruto favorito de muitos pássaros da caatinga, como a Jandaia que adora mastigar um caju e depois tirar o gosto no pé cheio de catolés.
Para comer o coquinho é preciso a esperteza de escolher a pedra perfeita pra bater e a mira com a força exata no quebrar dos frutos. "Cuidado com os dedos!" conselho do meu pai. Quanto mais seco os frutos, melhor de tirar o coquinho de dentro. De tamanho miudinho, chegando a ser menor que seus primos Babaçu e Licuri, o "Syagrus Cearensis" (nome científico) tem um sabor adocicado sutil, leitoso e fibroso na boca. O que faz seu gosto ser ainda mais especial, são as histórias que envolvem o ritual de comer: desde achar no meio da mata um pé de catolé, até as conversas enquanto se quebram os coquinhos. Se a amêndoa pode se comer pura ou acompanhada de uma Rapadura, também se faz óleo, farinhas e até um colar deles pra pendurar no pescoço.
Tem gente que só de ver um pé de Catolé tem muita história pra contar e carrega na memória os tempos onde a mata era, e ainda é, a maior aventura e sabedoria que se aprende e carrega numa vida inteira.
colheita do catolé em 2018
colheita do catolé em 2022
colheita do catolé em 2023
#feituras e criação da safra de fevereiro
Começamos o calendário do leite de pedra com a safra Yara, inspirada pelos festejos populares das sereias, homenageando as doceiras de tabuleiro, as cocadeiras, as ganhadeiras lavadeiras e filhas das Iyabas de água doce e flor de sal.
TerraMar foi o sabor criado especialmente pra safra, misturando o Cacau e o Leite de Pedra tradicional em meio a pedaços crocantes de caramelo de farinha de coco, quase que com aparência de cacos de vidro do espelho da sereia, imitando uma junção de cocada com os guarda-chuvas de caramelos de gosto inesquecível e que tanto pregou nos dentes da gente durante a infância. A caixa do mês veio com doses certeiras de uma doçaria marcada por histórias e sabores da cultura popular. A rapadura amarela do Cariri vai bem com pedaços de coco fresco, já o mel de caju se acompanha bem adoçando pedaços de banana e depois só jogar um pouquinho de farinha de pipoca por cima que está feita uma sobremesa cheia de sustança, fibras e vitamina c. O mel de caju de Pacajus é provar de um caminho bonito que liga o sertão até o mar. Quem vem de Pedra Branca quase chegando no litoral, se depara sempre com a estrada de cajueiros de Pacajus, sinalizando que estamos perto de chegar nos verdes mares do Ceará. Os bombons Gueledé, também presentes na caixa, são pra comer de olhos fechados, como quem bota a concha no ouvido e escuta o som das ondas: recheado com Cacau de leite de pedra e envolvido por um chocolate nativo 65% do sul da Bahia, te leva para uma experiência emocionante de se adoçar e salgar de mar até o fim de cada mordida.
Finalizando a safra nasceu Pérola, outro sabor de bombom feito especialmente pra Yara: com o mesmo chocolate nativo 65% e recheio de cocada cremosa de leite de pedra, farinha de coco e flor de sal, que todo um charme e potência de sabor na hora de se deliciar com a Pérola da sereia.
Para se aprofundar no tema: escute “ Rainha das cabeças” de Metá Metá, o álbum de samba das Ganhadeiras de Itapuã e conheça as histórias e fotografias etnográficas das “Mulheres de fé” de Raul Lody e Fatumbi Verger
#agenda Arapuá:
Março o grupo de estudos em cultura, cozinha e doçaria popular do Brasil se reunirá para falar de Cacau. O mês não só antecede a páscoa, mas também começa a alta estação da safra do fruto. A frente das atividades teremos Patrícia Nicolau, uma maga do chocolate que irá trazer o coletivo de Mulheres Pretas do Chocolate e irá compartilhar todo seu conhecimento de vida em aulas sobre esse ilustre fruto nativo que é o Cacau.
Teremos também a troca das Cartas Sementes entre as integrantes do Arapuá. Trazendo junto o compartilhar das escritas e a troca de alimentos feitos do cacau da sua região de origem, desde chocolates, a meles, amêndoas, nibs e outros. Nosso grupo tem cultivado encontros semanais para debater sobre assuntos não só das áreas já comentadas, mas principalmente para entender como estudar e escrever, criando um elo coletivo onde todes se ajudam e trazem pautas e atividades que desejamos fazer. Para saber mais acompanhe o instagram do Arapuá que em breve teremos divulgação da programação do mês completa, junto dos links acesso das aulas e muito mais.
#mimos
Um achado da música brasileira nos últimos tempos foram as violas de Luiz Bonfá. Gostei muito de ouvir enquanto escrevia e mexia panela de doce no fogão esse mês.
“Prazer, eu sou Cacau” é uma série de audio aulas com a mestra Pati Nicolau, que tem acontecido aos sábados às 14:30h na Rádio Web Pedra Rara. Uma dica bonita pra esse mês de março é acompanhar a programação da Pati e saber mais da história desse fruto e de como é feito o chocolate.
E pra findar um bolim de milho cheiroso com muito coco e rapadura, que a minha mãe doceira fez e um cafezim de lado pra brindar nossa primeira carta aberta e Cartase da VIDA! UHUUUU! Depois vou achar a receita dele pra compartilhar por aqui.
#antes do fim:
Quero muito agradecer aos 4 assinantes da nossa primeira campanha no Catarse: Bruno Camurati, Thiago Aguiar, Renata Ogusucu e Lais Lupinacci, muito obrigada querides!
É tudo novo pra nós e esse apoio no Catarse é um jeito que encontramos de levar pra mais gente a escrita do nosso fazer e poder ter mais segurança pra ter tempo de estudar. Até porque sem pesquisa não existe doce. Essa contribuição e apoio são muito importantes pra gente seguir com os estudos e a feitura do Leite de Pedra.
Ansiosa pelo nosso próximo encontro.
A próxima safra vem inspirada pelas histórias ancestrais do chocolate, junto da mata nativa das doceiras que moram nas serras do Ceará. Não deixem de adoçar a vida com um pedacim de rapadura ou com uma fruta do pé. Honrando sempre as raízes da boca e do coração da gente.
Calendário curtinho:
- Dia 6/3 tem lançamento da safra nova e encomendas abertas do Leite de Pedra;
- acompanhe o blog adoceiraselvagem.substak.com que teremos texto novo toda terça e quinta;
- Se puder apoia a gente no Catarse e até a próxima Carta Aberta dia 1/4.
um xero, com gosto de cocada das doceiras da mata atlântica da serra de Aratuba -CE.
obrigada por ler até aqui.
Inté.