Canjica de Vó e São João: preservando festejos e memórias alimentares Nordestinas.
a volta dos textos selvagens.
Um verde milho bordando a paisagem. É época de compartilhar os frutos e sementes da colheita, mas principalmente de fazer delas a memória mais saborosa das nossas origens. Após um ano voltando a morar no interior do Ceará, percebi mudanças extremas sobre os festejos desse tempo. Da saudade da canjica de Vó Maria às festas de rua com forró pé de serra, se fez a maior parte dos meus dias juninos. Aproveitei tudo isso como combustível inspirador e criei um São João saboroso na Safra Verde do Leite de Pedra. Homenageando a paisagem verde da mata-branca, os caboclos, o forró e as memórias alimentares que levamos no peito. Dando vida a sabores como Pipoca, Cabocla e Jurema. Misturas doces com base no milho, urucum, cacau, mel de cana, coco e amendoim, trazendo perfume e crocancia, pra dançar na boca de muita gente por todo o Brasil.
Noite de São João e Caruaru-PE fotos de Marília Chalegre
Por outro lado, algumas tradições pedrabranquenses começam a se perder no meio dos figurinos ostensivos das quadrilhas locais. A cidade permaneceu junho inteiro sem o colorido das bandeirolas. Nem ruas, nem praças, nem nenhum bairro de Pedra Branca se estampou de chita para a maior festa do Nordeste brasileiro. Com exceção das escolas e setores públicos e privados municipais que hoje fazem do São João, um palco de competições de ego e poder político. A resistência maior é das comunidades da zona rural, que continuam com muito esforço, a preservar tradições do compartilhar desde a fogueira em brasa ao luar, até a simplicidade das panelas cheias de delícias feitas de milho verde. No banquete é ordem muita sustança e fartura feita de forma coletiva, produzidos na própria comunidade: pamonha com queijo coalho, mungunzá salgado de fava novinha, pratinho que é uma cumbuca recheada com vatapá, arroz e paçoca de carne seca com farinha de mandioca, milho cozido ou na brasa e a majestosa doçaria popular! Sem esquecer daquela cachaça boa pra esquentar os couro na hora da dança.
pamonhas da colheita do milho de 2018 em Pedra Branca -CE
Entre as doçuras reinam os bolos de todos os tipos, perfumados com cravo e endro, feitos de batata doce, macaxeira ou milho e com bastante coco na mistura. As cocadas com açúcar queimado ou rapadura, pé-de-moleque em formato de barrinhas ou no modelo de bolo enfeitado com castanha de caju, sem deixar faltar aquele bolim de tapioca com bastante coco fresco por cima, o quebra-queixo,a paçoquinha de amendoim colhido da safra e ela, a rainha dourada do São João: a canjica bem amarelinha e cremosa com bastante canela. Em algumas regiões é conhecida como cural a canjica feita de milho verde ralado e em outras é o mungunzá doce de milho cozido branco ou amarelo, que ganha destaque na doçaria das festas juninas. Esse ano não teve banquete nem convite de festa no sítio. O gado da vizinha pulou a cerca e destruiu toda a plantação de milho na nossa casa no Sítio Cachoeira, sobrando apenas lágrima e a saudade aumentada no coração da caatinga. Passei dias em busca de canjica e sanfona pela cidade e nada. Sonhei com minha Vó, a gente se encontrando na cozinha dela pra comer a sua comida. Me lembro do cheiro tomando conta da rua, do prato separado lotado de canjica até a tampa. Na panela, o creme cor de ouro borbulhante. Vó Maria não era muito de cozinhar. Gostava de bordar, de cuidar das plantas, de moda, de costurar e de ficar conversando na mesa da cozinha ou na varanda de casa em meio a bagunça que as netas e filhos faziam. Os pratos que mais me lembro dela são: arroz de leite salgado, mungunzá salgado, pamonha, canjica, cuscuz com feijão de corda e rapadura ralada por cima e o doce de banana. O gosto da canjica dela não sai da minha boca. Lembro da última vez que comi, a mais de dez anos atrás. Ela me disse pra colocar um pouquinho de queijo coalho ralado por cima antes de eu encher com canela. Ela achava absurdo a quantidade de canela que eu colocava, e eu amava porque deixava o doce do milho bem temperado e a boca apimentada no final. Fiz achando que não ia combinar e queimei a língua: a canjica ainda morna no prato fez o queijo derreter e grudar na camada de canela em pó, fazendo cada colherada que seguia a minha boca se transformar num transe. Eu balancei a cabeça respondendo com um “sim” de olhos fechados, comendo tudo numa pratada só. E ela dizendo: “num disse que ficava bom!”. Tentei reproduzir a canjica de dona Maria do Socorro Corrêa. A derradeira vez que nos falamos foi em 2021 e na época, eu só pensava em lhe dar conforto nos seus últimos momentos de vida na terra. Consultei recentemente a minha mãe na tentativa de acertar a receita. Dona Kátia que, como uma boa filha de Iemanjá, é mais chegada a uma canjica feita só com sal, me respondeu instantaneamente: quem sabia fazer canjica de verdade era a Dona Maria. Mãe me disse pra ralar o milho, coar na peneira e provar a mistura com açúcar e leite na panela até engrossar. Também recomendou que eu não esquecesse do queijo coalho no final antes de colocar a canela, como Vó Maria gostava de comer. Corri pra casa e descongelei um milho verde que tinha sido colhido em maio antes do boi entrar no plantio.
canjica com canela na casa de Vó foto da amiga Marília em Caruaru-PE
Voltei no tempo me lembrando da quebra do milho e das sacas chegando do sítio direto pro quintal de Vó, e todas as mulheres da casa se reunindo com as bacias pra fazer pamonha e canjica. Chorei baixinho na beira do fogão e perdi o ponto da minha canjica pálida e grossa cheia de grumos. Mesmo assim, raspei o fundo da panela e provei sem esquecer do queijo antes de polvilhar a canela. A emoção foi imediata. Queria mandar mensagem pra Dona Maria e contar do causo pra ela rir de mim, que errei o ponto, que a canjica ficou pálida e toda grossa, mas que mesmo assim ela está viva ali, na minha vontade de matar a saudade através da memória daquele comer.
Importante lembrar sobre o sentido de renovação que os festejos juninos carregam. Marca o solstício de inverno no hemisfério sul, um tipo de ano novo ancestral baseado no tempo da natureza. É o festejo do povo em agradecimento à terra pelas chuvas e a fartura, onde tudo se sustenta e se transforma, seja no campo ou na cidade. E é também através da comida que esses e tantos outros ciclos se renovam. Por todo território se cultivam sementes e sabedorias populares sobre o plantar, o comer, o viver e principalmente o compartilhar com festa! Que o propósito dos festejos juninos seja renovado pela coletividade do povo nativo. Onde a memória e as culturas alimentares possam permanecer vivas e preservadas por muitas gerações de mãos cozinheiras e agricultoras. Sempre fortalecendo as raízes da cultura popular e camponesa do nosso território.
São João 2024 em Caruaru - PE fotos da querida amiga Marília Chalegre
São João, o maior festejo do Nordeste também sofre desvalorização.
Durante o mês de junho todo o Brasil se une na maior festa da colheita nativa. Mas é no Nordeste onde o maior São João do mundo resiste. Lugar de tradições como a festa do pau da bandeira em Barbalha, onde o mungunzá salgado é feito com feijão e a cachaça produzida localmente faz parte da vivência desse patrimônio imaterial. Em Caruaru, a região é famosa pelas festas que se fazem por todo o território urbano e rural, com fogos, fogueira, comida farta e muita música. No sertão baiano, as fogueiras e fogos são oferecidos aos orixás Xangô e Oxossi, com muito caruru, pipoca, axoxô, aluá e lelê de milho. Em Campina Grande, na Paraíba, a disputa é grande pelo título de maior São João do mundo, competindo com os estados vizinhos como Pernambuco e Alagoas que também são referência nas comidas e festejos juninos tanto na zona rural como urbana. Destaques para o bolo de goma alagoano e o manuê pernambucano assado na folha de bananeira da Cabocla Delícias que fez cestas de sabores juninos, recheadas de preciosidades da cultura alimentar afroindígena. Minha favorita foi a “Tamborete de Forró” que se eu estivesse em Pernambuco, certeza que ia me esbaldar com essas maravilhas.
Cesta de Sabores Juninos “Tamborete de Forró da @cabocladelícias
As comidas e as festas seguem diversas muitas vezes até o mês de julho, nunca de forma homogênea porque Nordeste não é tudo uma coisa só. As diferenças e misturas é o que faz a magia contagiante da nossa terra. Outras lutas por valorização cultural também se fazem presentes nessa época. Em 2024 algumas regiões como o Maranhão, os grupos de cultura popular lutam por mais apoio público, se manifestando contra a diferença de cachês e tempo de apresentação entre as atrações populares e empresariais nos festivais juninos. O que gerou uma desvalorização entre os grupos populares de Bumba Meu Boi, Tambor de Crioula e outras manifestações culturais da região, deixando Mestres e Mestras da cultura popular maranhense em segundo plano para dar maior destaque aos empresários e músicos famosos do mercado brasileiro.
“O governo do Maranhão não ajuda meu Boi / porque não sou de outro estado / ele traz de Salvador só cantor renomado / Chega aqui, já recebeu mais de 1 milhão adiantado / Cinco mil é o meu cachê / Não sei por que / eu tenho que receber atrasado”.
Toada do mestre Zé Olhinho do grupo Bumba meu Boi de Unidos de Santa Fé, um dos mais tradicionais do Maranhão.
No mercado de gastronomia brasileira a mesma premissa se repete. O destaque dos festejos juninos é para os pesquisadores de brasilidades que vivem no exterior e no sul do país, demonstrando uma postura onde “o povo de fora” é mais valorizado e apto a representar a cultura alimentar nordestina do que os próprios nativos que vivem e pesquisam sua terra. Falando do Ceará, é recorrente esse tipo de postura e supervalorização dos famosos da internet que residem fora do estado, que são trazidos e financiados para pesquisar e falar da cultura alimentar do nosso território no lugar dos cearenses que escolhem muitas vezes ficar no seu estado, sem apoio nenhum, para estudar e preservar suas origens. Essa medida baseada no destaque e na autopromoção, desvaloriza anos de trabalho promovidos por comunidades locais . Desafios que não devem ser romantizados em nenhuma época do ano. Que possamos transformar essas realidades de forma coletiva, sem apagar nossa ancestralidade. Reverenciado sempre a luta do povo trabalhador, que abre caminho desde muitos outros tempos.
Obrigada por ler esse texto até aqui. Após seis meses sem publicar nada, por falta de tempo, saúde emocional bagunçada e com a enorme demanda de trabalho na cozinha, quero muito agradecer quem pediu a volta dos textinhos e compreendeu o sumiço todo por aqui. Um agradecimento especial a Marília pelas fotos lindas do São João em Caruaru, a todo mundo que pediu doce na Safra Verde e que apoia de todo jeito nosso trabalho através do projeto Leite de Pedra e ao povo lindo que apoia através do Catarse e que nos ajuda muito em ter mais tempo de estudo, pra que essa escrita continue sempre viva!
Em breve mais novidades. Carta Aberta volta em julho e textos selvagens, sempre que der, às sextas e domingos do mês.
um xero em tu com doçura e coragem,
Rafa Medeiros, junho de 2024, Pedra Branca, Ceará.
teve uma parte do texto que fiquei com água na boca!
Que delícia de texto!