carta aberta#3 Notícias da Mãe-Terra Ceará
e a realidade de ser pesquisadora e doceira no interior.
Como é bom poder voltar a essa escrita! Foram muitas mudanças nos últimos meses. Três casas, seis horas de estrada do mar até a serra sertaneja e um intenso processo de adaptação que eu e nosso doce projeto estamos vivendo. Por isso essa escrita demorou tanto pra voltar, mas agora até todo dia 10 do mês a carta aberta chega na sua caixinha de e-mail.
No princípio, a ideia e o plano era se mudar no segundo semestre deste ano. A produção migraria pro sítio, nosso ponto de partida da pesquisa, onde tudo começou. Íamos fazer doce na ponta da serra olhando pra névoa ao amanhecer em meio a caatinga ainda verde-fria, para depois ver o dia esquentar com um bonito sol, seguindo seu pôr-se da janela da cozinha. Sonhar é bom.
Logo, esses planos mudaram com as fortes chuvas que deram no Ceará. Algumas regiões, como a Serra de Baturité, foram fortemente atingidas, havendo até deslizamento de terra. No sertão central, houveram alguns perigos de arrombamento de açudes, nas estradas de barro vermelho, do nosso interior que ligam a casa no sítio na zona rural à cidade. Mesmo sem arrombamentos, as estradas ficaram destruídas com as chuvas, dificultando por um tempo a passagem de carros pela região. Isso tudo influencia o tempo de produção do Leite de Pedra e a pesquisa. Muitas vezes (quase sempre) as pessoas não compreendem que o tempo de preparo do que fazemos está totalmente ligado à terra e à natureza.
Morar na capital nos últimos tempos ficou cada vez mais difícil. Não só pelo custo de vida cada vez mais alto, mas pela própria organização e estrutura da cidade. Se não fossem nossos apoiadores de todo Brasil e os amigos queridos de pesquisa do Pirambu, região periférica e de resistência histórica do Marco Zero de Fortaleza, jamais teríamos conseguido continuar existindo nesses quase seis anos de caminhada.
No estado do Ceará ainda existe muita desvalorização com o trabalho artesanal e com as pesquisadoras/escritoras independentes. É uma luta intensa e diária pra continuar vivendo do que a gente acredita.
Voltar pras raízes foi a única opção que tivemos de continuar fazendo o Leite, além de ser um desafio intenso e uma decisão de muita coragem continuar essa jornada. Pedra Branca é cidade do interior, uma serra muito bonita do sertão central no meio do coração do Ceará. O próprio doce leva esse nome como homenagem à saudade das memórias e sabores do nosso lugar de origem.
Aqui é caminho de passagem pra muitas outras localidades importantes do nosso território, o que também facilita nosso planejamento de campo nas andanças da pesquisa, estando assim mais perto da terra, do povo trabalhador, das doceiras e de onde o coração pode existir e ser mais feliz.
Pedra Branca recebeu esse nome por conta da sua história de formação municipal. Por ser uma região central e um caminho de passagem, onde vaqueiros e viajantes se encontravam ao redor de uma pedra branca para descansar de suas andanças. E com o passar do tempo foram ficando até fazerem morada. Assim contam a maioria dos pedrabranquenses urbanos.
Sabe-se pouco sobre os povos nativos dessa terra. Este tipo de registro é quase inexistente na cidade. É preciso um garimpo em muitas bibliografias distintas e também muita conversa e caminhada pela oralidade do povo.
Fazendo morada na biblioteca municipal, comecei uma leitura direcionada a conhecer a história do Ceará. Nisso, conheci uma importante expedição científica chamada Comissão das Borboletas, realizada pela corte portuguesa com o objetivo exploratório-colonial de regiões menos conhecidas do Brasil, sendo o Ceará, o primeiro lugar de peregrinação dessa comitiva científica.
Aqui a comissão realizou pesquisas nas áreas de botânica, geologia, mineralogia, zoologia, astronomia, geografia, cultura popular e etnografia em todo o território cearense e arredores, catalogando e coletando material para o Museu Histórico Nacional. O território cearense foi o primeiro ponto de partida não só pelas suas riquezas naturais de fauna, flora e minérios, mas pelo histórico de conflito territorial e do forte indício de ouro nas serras e matas não exploradas pelos colonizadores.
Também havia a intenção de registrar as tradições dos povos indígenas e de fortalecer uma cultura nacional através do conhecimento dessas comunidades, com a coleta de dados e artefatos para o MHN no Rio de Janeiro, mas sempre possibilitando que os resultados obtidos com a comitiva fosse o de dominar aquelas comunidades.
“Dito de outra forma, esperava que o contato com os povos indígenas, além de proporcionar conhecimento sobre a sua cultura, servia de instrumento para colocá-los sobre maior controle da sociedade nacional.”*
*um trecho do livro Comissão das Borboletas
Em meio a esses estudos descobri que um dos botânicos dessa expedição, Freire Alemão, registrou a Amburana Cearensis como planta nativa da caatinga, árvore de extrema importância para polinização de abelhas indígenas, como a Jandaíra, e de alta utilização na medicina popular pelos povos nativos, em lambedores (um tipo de xarope feito com sementes e ervas) e infusões de banhos para a cura de problemas respiratórios, vermífugos ou como calmante natural.
sementes de amburana
A florada do cumaru da caatinga ou imburana de cheiro, um dos nomes da amburana, acontece de maio até o fim das chuvas de julho no sertão cearense. Pergunto-me se a Comissão das Borboletas nos caminhos de passagem de Mombaça pra Tauá não vieram pelas terras serranas de Pedra Branca, já que o seu território nessa época, pertenceu a Mombaça e Boa Viagem.
O Ceará foi o primeiro estado do Brasil a declarar a extinção dos seus povos indígenas em 1863, por José Bento da Cunha Figueiredo. O então presidente da província na época, declarou, perante a Assembleia Legislativa do Estado, que nesta terra não existiam mais povos indígenas. Esta declaração foi uma forma de oficializar a expropriação das terras dos indígenas, que já a muito tempo passavam por revoltas e manifestações de guerrilhas internas. Nas fugas para as serras, em sua maioria, para se protegerem, estes povos tiveram que permanecer em silêncio sobre suas origens por muitos anos, perdendo o direito de reconhecimento do seu território e raízes ancestrais até hoje. Em meio a retrocessos constitucionais, não só o Ceará, como todo o Brasil continua correndo riscos de perder os direitos às suas terras.
budega de farinhas do Sr. Manoel Balbino em Pedra Branca
Nas minhas caminhadas pelos mercados da cidade e feirinhas de agricultura familiar, tenho conhecido muitas mulheres da terra: agricultoras, artesãs, fazedoras de cocada, boleiras, mestras de beijú, todas elas com sua força e coragem da cozinha a lida da terra. Elas me inspiraram a seguir com o doce e a fazer novos sabores para as safras do Leite de Pedra.
Conheci Dona Antonia do povo Kalunga, moradora do Sítio Fundão, que é artesã do barro e aprendeu o ofício com a mãe que foi aprendiz das ancestrais da sua família. Ela me contou que todo ano ela planta com muito gosto, seu arroz e fava, sementes que são preservadas desde muito tempo por ela, seus parentes e vizinhos agricultores.
Também conheci Isabele, uma jovem do interior recém formada no ensino médio em tec. de enfermagem, que quando conversávamos sobre tinturaria vegetal ela rapidamente compartilhou suas sabedorias e memórias sobre o fazer do urucum com sua Avó. As duas tinham um pé de urucum no quintal. Sua memória mais presente é a do cheiro no pilar das sementes enquanto a avó fazia as torras no fogão a lenha.
Sou devota de urucum desde criança, é um tempero muito presente nas comidas cearenses, principalmente no nosso vatapá de galinha feito de pão e sem dendê. Nesses dias, vergonhosamente não achei o pé de urucum que tem na estrada a caminho pro nosso sítio. Meu pai me levou ao encontro com a árvore ancestral e me deu uma bronca dizendo: “mulher tu nascida e criada no interior não achou o pé do urucum!” e ficou rindo de mim. Pilei as sementes pra torrar junto dos amendoins pra paçoca Guará da nossa safra raiz. O cheiro inesquecível do urucum pilado, compartilhado com Isabele, é minha nova memória favorita desses últimos dias.
pé de urucum na estrada do sítio cachoeira
motoqueira selvagem indo pro campo e caatinga verdinha das chuvas
Todas essas memórias, plantas, ofícios, comidas, biomas, são elementos que fazem parte da cultura popular nativa do Ceará. Mesmo sem o registro da origem indígena dos povos dessa região, é perceptível a raiz latente dessa ancestralidade. É claro que antes dos vaqueiros, que também eram bandeirantes, Pedra Branca tinha outro nome e provavelmente pertenceu ao território dos povos kanindé ou tubiba-tapuya que viviam próximos ao Rio Banabuiú que banha essa região do semi-árido. Povos guardiões das sementes de fava, exímios nômades caçadores e conhecedores do segredos das serras tanto de Mata Atlântica na localidade de Baturité, como da Caatinga no semi-árido passando por municípios agora como Madalena, Caridade até chegar em Pedra Branca.
pratão de baião de fava nativa com ovo, macaxeira cozida e banana, tudo plantado e feito em Pedra Branca
Diante de todos esses estudos e da intensidade dos dias que passaram, me questionei muito sobre: como conhecer a história da alimentação do Ceará? Como vou conseguir continuar fazendo o doce diante das dificuldades e desvalorização que a pesquisa vem passando? Como conseguir ânimo pra continuar escrevendo e sobrevivendo nesse cenário?
A mudança trouxe a oportunidade de recomeçar nossa jornada voltando o olhar cada vez mais próximo da terra e das problemáticas de sobreviver do que acreditamos. Nesses meses nasceram safras desafiadoras, mas cheias de beleza. Coloridas pela caatinga florida, perfumadas por maracujá selvagem, harmonizando com chocolates de outras regiões do Brasil, juntando os biomas e sabores, elevando a experiência de comer um doce a desbravar os caminhos do autoconhecimento da gente e das nossas origens.
Continuarei nas buscas pelas respostas e juntando força com o desejo de mudar a realidade, de educar através da doçura, de dizer e provar na ponta da colher de pau que o doce do Brasil não é o açúcar. Nossa doçura vem da seiva, é ácida, fermentada, misturada com flor de sal, demora horas no fogo, é feita de sementes, tá na frutose, ta no lugar de origem e continuará sobrevivendo e resistindo. Pra continuar sendo resguardada na memória dos corações nativos e na boca de quem faz e sobrevive dessa raiz.
provei pela primeira vez maracujá selvagem da caatinga cearense
pedaços de chocolate amazônico 70% cacau com cupuaçu cristalizado que vão no nosso sabor Marakajá de Leite de Pedra
Cacau com gotas de chocolate cultivado na caatinga do Limoeiro do Norte -CE
Iraci no tacho: leite de pedra com laranja da terra e flores amarelas da caatinga.
Meu agradecimento sempre especial aos apoiadores do catarse que fazem essa escrita continuar existindo e que financiaram o gás da nossa cozinha nos últimos dois meses, pra que o fogo do tacho e das palavras nunca se apague.
#a cura é doce
banca de Raizeira de Juazeiro do Norte nas festas de São João em Pedra Branca
Fiz meu primeiro lambedor! Chegamos em Pedra Branca no auge do período chuvoso e um clássico nessa época, é ficar gripado por conta do mormaço. No sítio, tem muito pé de eucalipto e limão rugoso, um tipo de limão bem parecido com o siciliano, mas com a casca bem mais grossa. Já tinha visto lambedor sendo feito, mas nunca tinha me arriscado a fazer sozinha. Mas a vontade de aprendiz de raizeira falou mais alto, me entreguei as folhas e benzimentos pra parir meu xarope raiz feito de mel de cana com imburana de cheiro, eucalipto, limão, hortelã e cidreira.
pé de limão rugoso
pés de eucalipto, caju, cajá e outras plantas do nosso sítio
lambedor pronto
O resultado foi um xarope mais líquido, super perfumado, azedinho e refrescante, que da pra beber de dose ou de colher. A gripe que quis bater nem chegou perto e o potão que sobrou fica na geladeira pra sempre que a garganta ou corpo der sinal de fraqueza a gente toma um lambedor pra fortalecer e adoçar a vida.
#antes do fim
Nosso grupo de estudos Arapuá fechou seu primeiro ciclo de atividades iniciado em novembro de 2022, nesse mês de junho, para entrar num processo de planejamento da sua próxima jornada. Nos próximos meses divulgaremos uma chamada pública com a nova programação e ficha de inscrição pra quem deseja se juntar ao projeto Leite de Pedra em oficinas de escrita e estudos sobre cozinha, cultura e doçaria popular.
O Jornal Raiz Doce esgotou a edição 0 “Cultura Doce” e começou seu processo editorial para a edição 1, que trará como tema as “Sementes Nativas” que fazem o doce do Brasil existir. A publicação está programada pra novembro de 2023, o mês que inicia a safra do caju no Nordeste.
#o melhor do mel:
escutem o podcast “Broa com Café” do Thomas Almeida na UFRJ. Conversa boa sobre comida com esse confeiteiro carioca que eu amo. Clica aqui pra ouvir.
Safra Luna do Leite de Pedra ta linda! O sabor Guardiã com nibs de cacau da caatinga é meu favorito.
Leitura que te da um abraço, “Comida é Memória” o livro novo da amiga querida Jane Lutti, tem sido meu momento favorito depois de um dia pesado de estudo ou na cozinha.
Curso Ira e Tapioca - uma oficina de doçaria nativa do fazer ao comer, que acontece nesses dias 15 e 22 de julho. Dois dias de muito aprendizado dobre meles nativos e o fazer da tapioca. Bora? Apoiadores do Catarse pagam meia e as aulas ficam gravadas no meet, com monitoria e tira dúvidas durante todo mês de julho e agosto. Pra se inscrever clica aqui
Escutar as violas de Dorival Caymmi me levam pra perto do mar no sertão e a capa desse álbum rosa é muito linda.
Receber e escrever cartas é uma das emoções mais valiosas que tenho tido nos últimos tempos. A última que chegou aqui em casa foi a da minha amiga Cris do Rio de Janeiro, ela me mandou livros, a melhor geléia de amoras que provei, macadâmias e limão cravo. Pessoas são a maior riqueza da vida, cultivemos esses momentos.
#docim pra viagem
Chocolate da Bahia 50% cacau ao leite de coco e com pedaços de coco queimado, outro presente que veio com uma carta da minha amiga Roberta. Comi o último pedaço essa semana e resolvi criar Luna, um sabor de bombom pro Leite de Pedra, pra compartilhar essa experiência mantendo viva esse memória deliciosa e amizade bonita. Obrigada por tanto Robertinha.
Até o fim de julho estreia no blog “Lábios de Cacau” uma escrita sobre histórias do comer e fazer dos chocolates no Brasil. O texto chega antes pros apoiadores do Catarse viu! Nos veremos em breve na próxima carta aberta todo dia 10 do mês.
Obrigada por esse encontro.
um xero,
Texto maravilhoso!