Escrevo sobre comida para falar da realidade. Entre o tempo de escrever e o tempo pra cozinhar, me dedico cotidianamente ao equilíbrio do fazer doce e a escrita que faz tudo existir.
O tempo é tempero das que sabem e das que buscam saber. Cozinhar e escrever são ofícios essenciais para o Leite de Pedra. De uma pesquisa que começou escrevendo na cozinha, questionando a realidade e experimentando sabores, nascem palavras dedicadas ao estudo, a transmissão e a criação da história sobre o nosso comer.
Viver do doce para existir na escrita tem exigido combinações nem sempre equilibradas entre o trabalho do fogão e o costume da caligrafia. A dificuldade de escrever nunca é uma fraqueza. Quem pode escrever sobre comida no Brasil? Quanto tempo leva pra um doce ser feito? Uma cozinheira pode ser uma escritora?
A vontade da escrita na cozinha também surge do tempo de descanso, das comidas apreciadas em silêncio, da vontade de comer um doce e do esforço em manter o fogo do conhecimento vivo. Meu trabalho de cozinheira sempre deu um jeito de existir na escrita. Quando o papel não consegue acompanhar o ritmo das panelas e das conversas com outras companheiras de ofício, a memória guarda ensinamentos da palavra vivida e compartilhada pela sabedoria da oralidade. A escrita e a fala trazem na presença e no corpo, uma interpretação profunda sobre o alimento e suas culturas. Por isso que os cadernos nunca me abandonam. Fiz desse costume um hábito pra vida.
Dividir a pia, o fogão, a caneta, o diário e o rala coco, tudo isso no mesmo espaço, cria um laço diferente quando se pensa sobre o que é pesquisar culturas alimentares no nosso território. Nossa cozinha é também sala de estar, mesa de escrita, escola e biblioteca. Tem mapas pregados nas paredes junto das panelas e colheres de pau. A inspiração e motivação sempre vem de lugares, estudos, sabores, vivências e pessoas. Na doçaria popular, a rapadura e os doces derivados da cana, são esse lugar de origem pro Leite de Pedra existir.
Cada safra no projeto do Leite nasce dos estudos sobre o fazer doce no Ceará e no Brasil. Com base na realidade e sazonalidade do lugar onde vivemos, pesquisamos e produzimos os doces. Criar uma Safra nos exige organização e o estudo constante como um critério principal para existir.
Não é durante o ano todo que um pé de cumaru flora ou que um cajueiro dá fruto. A castanha só pode ser assada e quebrada se alguém plantar o cajueiro. Na sabedoria de quem convive, alguns povos indígenas mediam o ano através da florada do caju, hábito que também é costume aqui no interior cearense. A “noda” de caju também marca as épocas chuvosas de cada período do ano. Por isso, a nossa medida de tempo acompanha a natureza e suas expressões mais vivas. Aqui, o processo de escrita também cresce como caju e também flora como o cumaru, seja alimentado pela terra, seja pelos livros e conversas com quem compartilha dessa realidade.
Toda semana uma saca de coco aguarda para ser transformada em leite. Primeiro os 60 cocos são partidos em 120 bandas de coco quebradas. Com muita atenção e rapidez, seguro numa mão o coco e na outra um pequeno facão feito de roçadeira, modelado artesanalmente pelo meu pai. Bato com força, criando uma linha ao redor do coco até ele se partir. Descarto a água, já que o coco seco maduro guarda dentro de si uma água mais salobra, menos gostosa que a do coco verde. Na cultura brasileira, a convivência de africanos e povos nativos guardou a água de coco para banho sagrado e fez do fruto delícias de doce e de sal.
Misturado com mel de cana, há, na boca e na memória, uma lista emocionada de sentir o gosto só de falar seus nomes: doce de mamão verde, os sequilhos, beijus de tapioca, queijadinhas, bolos de milho, canjicas, beijinhos, cocadas de todas as texturas e sabores, mas principalmente a de coco queimado da Praia da Massagueira. A cocada da Massagueira é registrado no livro de saberes como patrimônio imaterial do Estado de Alagoas e foi tema escrito em uma das matérias do nosso Jornal Raíz Doce.
Mas depois de ralar o coco, pesa e anota-se tudo sobre o seu processo. Quanto tempo pra quebrar e ralar, lugar de origem do alimento, quantos quilos renderam, em quantos tachos de doce o leite de coco será transformado. São em média 14 quilos o rendimento de uma saca de coco, que se transformará em leite de coco natural usado como base para a feitura do Leite de Pedra. Misturado ao mel de cana, cada tacho de doce leva sóis e luas de fogo e trabalho.
Daí uma regra básica da doçaria popular: tempo e temperatura. Controlo no fogo as etapas da transformação entre o mel de cana e o leite de coco até tirar Leite de Pedra. Processo semelhante ao ofício dos Mestres de rapadura: reduzem caldos da seiva da cana criando uma infinitude de texturas e sabores, determinados pelo tempo que ficam em cada caldeira, tibornas, tachos ou gamelas.
Foi publicado no livreto “Fortalecimento da Doçaria Cearense” a primeira etapa dessa vivência na nossa pesquisa. Lá, a escrita buscou aproximar as pessoas da realidade sobre o que é fazer e comer doce no Brasil, entendendo que esses processos começam na terra por quem planta e não apenas abrindo um saco de açúcar. Firmamos que existe muita técnica e poesia no viver e fazer doce nativo do Ceará, além de muita falsificação histórica sobre a alimentação do nosso território.
Ter escrito esse livreto me ensinou a criar uma metodologia de estudo baseada na realidade e na natureza, onde tudo tem o tempo certo de cada coisa.
Enquanto o Leite de Pedra ferve e reduz-se nas panelas, fazemos a manutenção da cozinha e da vida. Isso engloba a escrita nas redes, as postagens do blog, a edição dos textos aos apoiadores do Catarse, o atendimento online das encomendas do doce, tudo isso aliado a luta sem fim do cuidar de si e do trabalho doméstico.
Quando passam as horas de tacho, o doce vai chegando próximo ao ponto final da textura desejada. O cheiro vai tomando conta de tudo, acordando a memória de muitos sabores e me fazendo esquecer por alguns minutos, da dor nas pernas e do calor na beira do fogão. Quem passa perto diz: “Eita que o cheiro de bolo tá é bom!”. Só que não é bolo, é pedra.
A lembrança do cheiro da gamela cacheando rapadura no engenho, dá lugar a saudade de conversar com Mestre Antônio e escutar seus ensinamentos sobre o ponto de cada doce que sai do seu tacho. Vontade de puxar alfenim com Dona Anita e conhecer a história de outras mulheres que fazem a vida através da cozinha e do doce. Assim, continua o tempo mexendo e cuidando para não queimar ou respingar no braço as borbulhas do Leite de Pedra quente. Vai mudando de cor, vai aparecendo o fundo da panela e adoçando tudo e todos que estiverem por perto.
Assim eu e outros existimos, na escrita e na cozinha. Quando é terminado o ponto do doce, começa mais uma etapa cuidadosa desse processo. É tempo de botar no pote as histórias da nossa terra, escrever poemas e cartas, cortar panos floridos e embalar palavras e doçuras que vão viajar pelo mundo fazendo morada na vida de pessoas de muitos lugares do nosso Brasil.
Apesar de toda rotina exaustiva e muitas vezes caótica, que faz essa doceira ter que adaptar os planos toda hora correndo atrás do relógio, não faria nada diferente do caminho que escolhi viver nos últimos anos dentro desse projeto. Mesmo em momentos de desânimo, causado principalmente pela desvalorização do trabalho de pesquisa, penso nas pessoas que também passam pela mesma situação e não desistem de continuar suas jornadas. Isso pra mim, chega a ser uma situação difícil de escrever.
Essa é uma realidade que eu vivi e conheci de dentro. O esforço dos invisíveis produzem a reputação de “chefs-pesquisadores” donos de restaurantes à frente de cargos políticos da cultura alimentar nacional. São, no fundo, muitos financiados e financiadores que bradam trabalhar por algo que nunca suaram. São estes que ganham a fama de ser sem sequer colocar a mão na terra do trabalho honesto. Uma realidade bruta e dura de engolir, onde quem luta é exilado e se exila para nossa sobrevivência.
Carrego comigo a coragem de muita gente que lida com a terra, que preserva temperos e que se sustenta do ofício do fazer com as mãos. Respeitar e valorizar o povo trabalhador é também nunca estar só nessa luta. Essa força é o sabor que faz o Leite de Pedra continuar resistindo e é por essas pessoas e histórias, que aliamos o tempo do doce a uma escrita para transformar a realidade. Valorizando sempre as nossas origens e as pessoas que escrevem junto da gente, a verdadeira história sobre a alimentação nativa.
Por isso o nosso tempo do doce e pesquisa não cabe em conceitos de guerra do mercado mundial, nem segue o padrão elitista para falar sobre comida. Cada Leite de Pedra é único, imperfeito, demorado ou ligeiro, escreve com colher de pau e é marcado pelas mãos de quem cuida para que a nossa raiz doce possa continuar viva na boca e no coração da gente. Assim desejo continuar essas jornadas, vivendo no tempo de preservar a natureza, educando, aprendendo, valorizando, fazendo doce e escrevendo na beira do fogão. Lutando e incentivando a escrita de outras cozinheiras e contando as histórias do povo trabalhador que faz a nossa cultura de comer.
Pois todo tempo é valioso pra terra e para quem busca preservar aquilo que nos motiva existir. Seja na cozinha, na palavra, no doce e na escrita. Vida longa às sabedorias que são cultivadas por gente verdadeira, na doçura e na coragem de escrever na realidade a nossa própria história.
#mitologia do Doce de Leite
Esses dias minha mãe me deu uma missão de consertar um doce de leite que ela fez e que, dizendo ela, não tinha ficado bom porque estava meio salgado. É comum encontrar na região central do Ceará o doce de leite mais claro e líquido, com um sabor mais cru. Curiosa com essa diferença de textura e cor, fui pesquisar mais sobre a história e a origem do doce de leite e me deparei com a frase do historiador argentino Daniel Balmaceda: “nosotros no tuvimos nada que ver con la invención del dulce de leche”.
O mito mais conhecido sobre a origem do doce de leite está ligado a Juan Manoel de Rosas. O militar e político argentino estaria preparando uma “lechada”, leite quente com açúcar, quando alguém bateu à porta de sua casa. Juan indo receber a visita, teria esquecido o preparo no fogo, dando assim origem a sobremesa mais tradicional do seu país e ainda levando o título de inventor do doce. Mas, o que conta o historiador Daniel Balmaceda é que a origem e invenção do doce de leite não tem nada haver com os argentinos e sim com o sudeste da Ásia. Então não foram os argentinos que inventaram o doce de leite? Pelo que parece, “o doce de leite era originalmente comido e preparado na Indonésia no sudeste da Ásia, e de lá foi levado para as ilhas Filipinas por volta do século 6.” informa o historiador. Por volta do século XVI as ilhas Filipinas foram colonizadas pelos espanhóis, foi como o doce de leite acabou chegando no México onde ganhou temperos e uma textura mais parecida com a que se conhece hoje. A origem do doce também está diretamente ligada à rápida expansão na produção de cana-de-açúcar nas ilhas ibéricas atlânticas, no século XV, e no Brasil, América Central e Antilhas a partir do século XVI. Atualmente Brasil e Argentina são os maiores produtores mundiais.
Pois bem, agora sabendo que o doce de leite de Pedra Branca é mais parecido com o original da Indonésia, fui eu temperar o doce da minha mãe. Coloquei extrato de baunilha que eu fiz na cachaça e um pouquinho de raspas de cumaru da Caatinga e da Amazônia. Deixei borbulhar no fogo mexendo bem e finalizei com nibs de cacau cearense. Ficou mais caramelizado, no ponto mais cremoso e com um cheiro irresistível. Quando entreguei o doce pra minha mãe ela ficou toda contente, mas confesso que ela abriu primeiro o potinho pequeno com uma sobra da panela de Leite de Pedra com cacau e disse: “esse aqui é bom porque tem o gostinho da rapadura!” Nesse momento meu coração ganhou o prêmio de melhor doce de leite do mundo!
#Antes do fim:
Adiamos a publicação da nova edição do Jornal Raiz Doce para 2024. Com a demanda de trabalho imensa no Leite de Pedra, juntamente com alguns problemas que atrasaram a Safra Cumaru e o final de semestre turbulento que tive na faculdade, acabei precisando de mais tempo para conseguir fechar alguns ciclos. Para atender a demanda dos alunos do curso Ira e Tapioca, além dos encontros que tivemos no google meet, resolvi fazer um manual mais um vídeo de apoio com instruções e identificações de farinhas de tapioca, meles de abelha e frutas e seus preparos. Espero que até o final de novembro eu consiga fazer a entrega desse material com os certificados de participação no nosso terceiro encontro final para tirar dúvidas. Concluindo o ciclo e comemorando dia 28 de novembro, o 1 ano de existência do grupo de estudos Arapuá que deve retornar suas atividades também só em 2024.
#O melhor do Mel:
Falar das cocadas de Alagoas me lembra desse vídeo do Djavan em 1999 no programa “Ensaio” da Tv Cultura. É bonito demais ver ele falando sobre Maceió e a influência que a mãe dele tem na sua música.
Ganhei alguns meses atrás da amiga Samila o livro “Guia de Práticas de Bem Viver: memória e sabedoria de mulheres da Amazônia maranhense”. As receitas e histórias dessas mulheres são inspiradoras e cheias de riquezas sobre a cultura do Maranhão. Pra baixar o livro clica aqui.
Comecei a ver a série “The Bear” e confesso que o sentimento de nostalgia foi inevitável. Vi o episódio 4 da primeira temporada hoje e bateu uma vontade imensa de ter uma micro padaria. Marcus, o confeiteiro-padeiro é meu personagem favorito.
Chegou a época do caju! Esses dias tenho conversado muito com doceiras e cozinheiras aqui de Pedra Branca sobre a colheita do fruto e suas formas de comer. O primeiro doce que provei esse ano foi o da minha prima Gina, que relembrou com emoção o doce de caju que sua mãe fazia e que eu comi quando era criança. Sabores e histórias que são pra vida toda.
#Docim pra viagem:
Recebi uma caixa cheia de maravilhas que uma amiga trouxe do Pará pro Ceará! Camila foi no Ver o Peso com minha lista de desejos que eu pedi pra ela, mas a melhor surpresa foi o bombom de bacuri que ela mandou de presente. O negócio mais lindo que provei nos últimos tempos.
Depois volto pra contar mais como foi quebrar e comer a castanha do Pará fresca pela primeira vez e provar o famoso chocolate amazônico enrolado na folha do cacau, feito pela Filha do Cumbu.
Um agradecimento especial pros querides 13 apoiadores do Catarse que continuam ajudando essa escrita continuar viva. O dinheiro doado nos últimos meses será usado para a feitura do nosso inventário de sabores do Leite de Pedra e na manutenção da cozinha neste final de ano. Muitíssimo obrigada a todo mundo que apoia de toda forma, a existência desse projeto.
Vida longa a doçaria popular e a escrita do povo trabalhador!
*uma foto da Rafinha lá em 2018 no engenho do amigo Marciano quando tudo começou
Obrigada por esse encontro.
Um xero e até o próximo texto.
Rafa Medeiros. @adoceiraselvagem
socióloga, pesquisadora da antropologia da alimentação e doceira cearense.