Nas raízes do cajueiro são guardadas muitas histórias. Em Paiacu não seria diferente. Formada às margens do rio Açu no interior do Ceará, a comunidade era conhecida pelas festas sagradas do culto às árvores e por suas guardiãs guerreiras, protetoras da terra e do alimento para seu povo.
Suyá nasceu e se criou perto das folhas do pé de caju, vendo sua terra se transformar com os seus anos de vida. Cresceu ouvindo as histórias que sua avó contava sobre as magias e comidas de suas ancestrais, descendentes das guerreiras Icamiabas que lutaram bravamente em defesa da terra e do corte dos cajueiros daquela região.
Com os anos de seca e a especulação imobiliária causada pela grande indústria do caju, a paisagem de Paiacu já não era a mesma. A festa do mel de caju já não acontecia à anos. A chuva das flores, que ocorria sempre no final de agosto e setembro para anunciar a florada das árvores, preocupava os nativos pelo seu baixo volume. Sem flor não tem castanha e de tempos em tempos, também se perdia os modos de fazer das comidas de caju e os cuidados com a planta. E assim, muita gente migrou de Paiacu para outras regiões, abandonando os cajueiros e suas raízes.
Suyá não quis deixar sua terra. Ela tinha um elo com as árvores, em especial com o único pé de cajuí da região, que nunca deu frutos. Passou a conversar com o povo investigando a história dos antigos, buscando juntar as sabedorias sobre botânica e a alimentação ancestral da comunidade. Na cozinha de casa ela botou em prática tudo que tinha aprendido com seus parentes e amigas da cidade. Fez uma farmácia curativa de gente e de planta, criando pomadas, xaropes, fungicidas e fertilizantes naturais à base de folhas e raízes do cajueiro. Um dia, a mãe de Suyá observou o jeito que a filha se dedicava a cozinhar e criar remédios para salvar as plantas e foi junto pra cozinha compartilhar as receitas de caju que sua avó fazia, nos tempos de fartura e colheita de Paiacu.
Maravilhada com tudo que ouvia, Suyá escreveu as receitas no caderno antes de dormir, e guardou os escritos ao lado do candeeiro. Nessa noite ela recebeu a visita de sua avó em sonho, onde ela lhe entregava um Muiraquitã pendurado a uma colher de pau e lhe disse: “minha menina dos olhos de chuva, cante pros raios de sol e traga de volta a alegria da nossa terra.” A fumaça no quarto acordou todo mundo da casa. Era o caderno de Suyá que pegou fogo no candeeiro. Salva pelos miados e arranhões de Nala, a gata guardiã da casa, que era parceira e melhor amiga nos últimos anos de vida da avó de Suyá.
O incêndio preocupou a comunidade que se mobilizou em ajudar a família da jovem a recuperar sua casa. Suyá contou do seu sonho pra todo mundo e pediu ajuda para cuidar dos cajueiros, mas quase ninguém acreditou que aquilo daria certo. Menos Dona Iraí, que quando soube do sonho da menina chamou ela pra uma conversa: “menina dos olhos de chuva, tua avó deixou isso aqui pra tu comigo e me disse que no dia certo eu te entregasse. Chegou a hora de você cantar pro cajuí! Passe seus remédios nas planta cantando bem assim:
sol e chuva vem do céu,
meu cajuzim é minha raíz
ancestrais tragam água e flores
pro meu povo voltar a ser feliz!”
Iraí acompanhou Suyá o resto do mês de agosto, cantando e cuidando dos cajueiros todos. Ela não largou do amuleto deixado pela avó em nenhum momento: era o Muiraquitã mágico do sonho, na forma de uma castanha de caju, que carregava junto dela perto do coração, durante suas cantorias e jornadas na cozinha. Suyá pegou gosto pelo fogo e temperos e sonhava com o dia que poderia finalmente fazer as comidas de caju que sua mãe tanto recordava.
Na última noite do mês, quase ao amanhecer do dia, o céu fechou de nuvens cinzas. Devagar caíam gotas tímidas sob as telhas das casas de Paiacu. Rapidamente os pingos começaram a engrossar, acordando todo mundo. Era chuva forte que caía do céu como uma festa que emocionava a todos da cidade. Suyá chorava de alegria e correu pra se banhar com as crianças e amigas, perto das raízes do grande cajueiro do rio Açu.
Em poucos dias todos os cajueiros estavam coloridos de flor, inclusive o pé de cajuí! Em pouco tempo todos da comunidade se organizaram para o retorno da grande festa do mel de caju. A primeira castanha foi colhida por Dona Iraí, que junto de Suyá e todas as mulheres da comunidade, formaram uma sociedade secreta feminina dedicada a estudar e proteger a cultura nativa de seu povo.
O cajuí deu seus primeiros frutos que se transformaram no símbolo das sacerdotisas Suyás, como são conhecidas até hoje por muita gente. A seca nunca mais ameaçou a comunidade de Paiacu, que morava perto do rio Açu. Já o solo onde as indústrias de caju fizeram grande desmatamento e envenenamento da terra a produtividade caiu fazendo a empresa fechar na cidade e abandonar as terras. Anos depois, as sacerdotisas Suyás conseguiram restaurar e tomar posse das terras e cajueiros que sempre foram do seu povo. O cheiro do mel de caju agora era perfume certo em toda colheita de safra e nunca mais Paiacu soube o que era tristeza.
E dizem as mais velhas que toda véspera de chuva das flores, a jovem Suyá sai das raízes do cajuí pra dançar com as crianças e comemorar com alegria, a fartura e vitória das corajosas mulheres daquela terra.
Viva a força da natureza e tudo que ela representa! Viva o caju e as guardiãs das árvores! Viva!!!
Coisas de comer e de pensar:
Anacardium: faz parte do gênero dos cajueiros e é derivado do grego “kardia” que significa “coração” gerando o nome botânico da planta devido ao formato do fruto.
Semente Nativa: Anacardium occidentale é o nome científico do cajueiro nativo da região Nordeste do Brasil.
A maior árvore do Nordeste: é o cajueiro da Praia de Pirangi no Rio Grande do Norte, mas existe uma disputa pelo título entre o cajueiro da praia no litoral do Piauí.
Cajuí: Anacardium humile ou cajuzinho do cerrado é uma espécie de caju bem pequeno de gosto mais ácido também chamado de cajuzinho-azedo na região do Goiás;
Paiacu: também chamados de Tapuios é povo indígena localizado nas regiões do GO, PI, CE, RN e os primeiros habitantes da cidade de Pacajus no Ceará e que ficaram conhecidos por sua luta contra os colonizadores.
Planta que tudo cura: na medicina popular o cajueiro e suas folhas, frutos e raízes são muito utilizados contra problemas de anemia, diarréias, além de anti-inflamatório e ótimo cicatrizante natural. A polpa também é utilizada como fertilizante natural para as árvores.
Suyá: ou Kĩsêdjê são um grupo indígena que habita o estado brasileiro de Mato Grosso, mais precisamente a Terra Indígena Wawi e Norte do Parque Indígena do Xingu.
Icamiabas: é o nome dado às mulheres guerreiras de uma sociedade matriarcal lendária que habitavam o Rio Amazonas no Norte do Brasil.
Iraí: ou Nannotrigona testaceicornis, é abelha nativa também conhecida como jataí-mirim e por sua coloração preta revestida de pelinhos grisalhos;
Muiraquitã: ou amazonitas são amuletos talhados em pedra associado às lendas das guerreiras Icamiabas;
do mel às muitas coisas de comer: do caju tudo se come! O mel é feito do seu sumo e é reduzido durante horas no fogo. Do fruto que é a castanha, se torra e se come de diversos jeitos ou mesmo puro assim que se tira da casca assada. Entre outras das minhas comidas favoritas, está o vatapá de caju que faço com caldo de legumes e bastante urucum, podendo rechear até coxinhas fritas no dendê. Quem quiser saber mais sobre essas receitas me manda mensagem que te ajudo a fazer elas em casa!
Esse ano não houve a tão aguardada chuva do caju em Pedra Branca, mas os cajueiros da região tem resistido sua florada. Esse conto é fruto de estudos sobre os povos indígenas do Ceará e do Brasil, e também de muitas conversas com amigas e parentes doceiras que esperam a colheita do caju para a feitura dos doces. Foi uma forma de anunciar a época do caju que começa em agosto com a chuva da árvore e vai até janeiro com grande fartura e colheita dos frutos. A planta e suas culturas resguardam um valor muito especial para o povo cearense.
para continuar apoiando essa escrita e pesquisa, clica aqui.
um xero grande com gosto de doce de caju e até o próximo texto.