“- Arrodeia - Mariinha grita na cozinha. - Teu prato ainda tá quente!”
Existem muitas histórias que são preservadas pela oralidade. Memórias que fazem parte da formação cultural e social de muitas comunidades dos interiores do Brasil. Histórias guardadas nos diários sonoros entre muitas gerações de mulheres. No livro “Mata Doce” não é muito diferente. A escritora Luciany Aparecida tece um universo dando voz a histórias de vidas que normalmente são silenciadas pelo patriarcado.
O romance se passa numa comunidade rural no interior da Bahia, onde vive Maria Teresa, também chamada de Filinha Mata-Boi, a personagem central do livro. Junto dela, a vida de outras mulheres se entrelaçam em meio a natureza bruta e mágica naquele interior rural. Um casarão com roseiras brancas. Uma datilógrafa matadora de bois. Um lajedo de pedras. Mulheres que escolheram lutar por sua liberdade, acolhendo quem também desejasse ter um bem viver e ser feliz.
Já nas primeiras páginas, Mata Doce pode ser impactante para alguns. Para mim, foi como reconhecer até a própria história de vida e das minhas ancestrais. A autora escreve, como quem vai criando um bordado grandioso, unindo as vidas e lutas dos personagens a poética do viver naquela terra. E mesmo onde a leitura pode parecer mais amarga, considere que isso seja mais um lembrete em forma de alerta para uma certa romantização dos processos coloniais, tão bem demarcados e escritos pelas estruturas de poder. “Maria Teresa parou em frente ao boi vivo e arrancou sua careta”. Uma mulher matando um boi na primeira linha de texto do livro, até para as pessoas rurais mais acostumadas, (sim muitas mulheres no meio rural ou em casas de Axé sabem dos ofícios da vida e da morte) é impactante. Mas a primeira coisa que me cativou nessa leitura, além das personagens mulheres e sua forte ligação com a natureza e a ancestralidade, foi a manifestação cultural através da comida.
O romance da autora baiana trás o melhor da identidade doce brasileira, aliada a cultura popular e a biodiversidade do local. Isso acabou me motivando a fazer o fichamento de todas as comidas, alimentos e doçuras que aparecem no livro. Na lista já estão o pote de doce de leite para comemorar o diploma de datilógrafa de Maria Teresa, o bolo de casamento com suspiros e rosas branca, os biscoitos de goma da professora Mariinha, o doce de mamão verde de Lai, o quebra-queixo de Mané da Gaita e muito mais. Sendo também através do plantio de milho, mandioca, feijão que dona Eustáquia da Vazante, fundadora do casarão do lajedo, pode criar um espaço seguro de liberdade e esperança para muitos em Mata Doce.
E mesmo a tragédia que muda a vida de Maria Teresa, reflete a sua existência enlaçada a vida de tantas outras mulheres, onde a sua maior herança é o amor, a coragem e a força.
Escrevendo cartas, acolhendo refugiadas, alfabetizando pessoas, alimentando, compartilhando água e afeto na casa onde o roseiral é uma entidade Mãe de todos que ali se botam acreditar a ter uma vida melhor. Transformando a dor e o fel em palavra e doçura. Para assim, seguir em frente preservando a memória das mulheres do lajedo e abrindo caminhos para as que virão.
No áudio, a leitura de alguns trechos do livro Mata Doce na Biblioteca Arapuá. Espero que gostem e que isso possa incentivar mais pessoas a conhecerem essa obra emocionante.
Notas da leitora:
Chorei litros em várias partes, principalmente lendo as cartas e na morte de Zezito, e também me deliciei horrores com o tapa na cara que Maria Teresa da em Coronel Amâncio;
As comidas e plantas que aparecem no texto tem uma ligação emocional com as personagens, como o algodão doce e a pipoca da memória de Lai, as rosas brancas para as mães Tuninha e Mariinha e a floração de Amburana para Zezito e Maria Teresa;
A cachorrinha Chula e Mané da Gaita ganharam meu coração;
A Casa de Oió e o rio Airá de Mata Doce me lembraram Magé Bassã de Tenda dos Milagres e a histórica Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá.
O livro Mata Doce me deu vontade de ouvir a discografia de Cátia de França. Escutem “Hóspede da Natureza” e o “Vinte palavras ao redor do sol”, de preferência escute o álbum todinho, não vai se arrepender.
O Arapuá é um grupo de estudos em cultura, cozinha e doçaria popular. Criado em 2022 pelo Projeto Leite de Pedra para cultivar um espaço seguro de estudo e escrita que valoriza a sabedoria da terra e do povo trabalhador. Por enquanto as atividades do grupo são apenas internas, mas ainda em 2025, o Arapuá volta com aulas abertas, a estreia do cineclube e encontros virtuais na biblioteca com gente de todo Brasil.
Obrigada por ler até aqui.
A minha agenda de escrita e publicação dos textos no blog acabou ficando meio bagunçada nos últimos dias. Tive que dar conta de um turbilhão de coisas da pesquisa, além de ralar mais de 200 cocos pra fazer os doces da Safra. Com a intensa demanda de trabalho na cozinha, eu volto com uma nova programação dos textos em breve e de preferência sempre às segundas, o dia oficial de folga da cozinheira.
ótimos dias pra ti, um xero e até já!
Rafa Medeiros, Pedra Branca Ceará 29 de Maio de 2025.
Minha doceira preferida tem doce nas palavras pra escrever de livro também! Já está na lista ❤️
parece ser lindo, coloquei aqui na lista!