Mulher de Tacho
Sua sabedoria e importância para doçaria popular continuarão a se transformar com o tempo
A crônica “mulher de tacho” foi escrita em 2022 para um site especializado em confeitaria, mas o texto foi apagado pelos mesmos idealizadores sem avisarem a autora, no caso eu (rsrsrs).
Essa é uma história real do encontro de duas doceiras na periferia da capital do Ceará e que jamais será apagada da memória e história da cultura doce da nossa terra.
foto: Dona Ni fazendo cocadas de chocolate em Serra Grande/Bahia por Juliana Venturelli
“Doceiras populares não querem o seu resgate.
São gerações que se renovam muitas vezes sem que os laços sanguíneos precisem existir.
Na volta do mercado, com a bicicleta carregada de coco para se tirar o leite e depois virar doce, avistei uma senhora que vendia canjica de milho, doce de banana de rodelinha, doce de mamão verde e bombons com recheio de cocada. Tudo isso exposto e transportado num carrinho de mão, que ela carregava andando pelo bairro, buscando vender sua força de trabalho dentro de cada um daqueles potes adoçados com suor e os seus muitos anos de peleja.
Levei pra casa sentimentos e reflexões, junto do olhar dela que sorria por cima da máscara. Claro que não esqueci de levar a canjica amarelinha com bastante canela, que ainda estava morna na vasilha e um pote cheio de rodelinhas de bananas avermelhadas envolvidas numa calda doce. Vermelho-Banana: cor e sabor favoritos da vida ou seriam ótimos tons pra uma bandeira do Brasil.
Não foi preciso que eu ou a Sra. Doceira do carrinho de mão dissesse seu nome, idade ou endereço. Nós éramos conterrâneas do ofício de viver da lida de adoçar com as mãos, a boca e a vida de desconhecidos.
Me despedi dela agradecendo o momento marcante e inesquecível. Tímida, ela continuava a sorrir com os olhos, dizendo que me visitaria todo dia se pudesse. Rimos juntas, falamos de como é difícil fazer e viver de doce de tacho, mas que abandonar o ofício era quase como escolher deixar de existir.
Com os olhos marejados, me senti a mulher mais importante e de muita sorte pelo encontro inesperado, pelo rico conhecimento técnico e de vida que ela carregava e ali humildemente compartilhava comigo cada detalhe do seu fazer e das dificuldades que nunca a fizeram desistir de continuar .
Seguimos nossos rumos, ela com o carrinho de mão e eu pedalando na bicicleta.
Já em casa, comi o doce aos poucos, como quem não quer nunca que aquele encontro se acabe. Penso que nós duas, e tantas outras como nós, continuarão suas lidas em viver de trabalho doce, e não é o resgate que condicionará uma mudança sobre as senhoras artesãs, os doceiros e doceiras, mas uma transformação pela raiz.
A mulher do tacho resistirá. Sua sabedoria e importância para doçaria popular continuarão a se transformar com o tempo. Para que as formas de fazer doce se renovem, e para que nossa dignidade e importância seja alcançada.
Onde essa raiz doce nunca morre, e o fogo do tacho não se apaga.
Continuando os caminhos e se encontrando na luta.”