O agogô marca o ritmo nas panelas. Fim de ano também é época de festejo das Yabás. A água, o ar, a terra, o fogo, o som e o feitiço, misturados no dendê e no mel, mudam a energia de qualquer dia. É hora de lavar e quebrar o feijão, tirando todo o olho e casca, lembrando sempre de botar a àlùbósà crua com sal na mistura. Na hora de bater a massa, é bom uma bacia e uma colher de pau, firmadas e mexendo bem para envolver o ar. O sopro da ventania de Oyá é tempero essencial que poucos desvendam e que sua importância genuína é enraizada desde a sua origem africana, até seu fazer e comer em nossa terra. Oyá é também quem acende o fogo que aquece o dendê, se banhando de vermelho feito borboleta que dança soltando raios. É Mãe das tempestades, guerreira corajosa, senhora do comércio e do movimento. O toque do ilú faz o encanto do acarajé se tornar bola de fogo flutuante como o ar, que borbulha por um tempo certo no tacho quente. A cebola boiando na lava do dendê ajuda a soltar menos fumaça na hora do fritar. E ao provar das chamas redondas, derramo com gosto nos lábios, a cor e o perfume do dendezeiro ancestral. E se tiver vatapá, caruru, salada, pimenta e camarão, a festa fica completa! A cozinha me ensinou muito sobre o amar e o amor próprio. Através dela pude me conectar com outras mulheres, sua história, cultura e ancestralidade, transformando a vida num eterno caminho de coragem e autoconhecimento.
Sempre fui apegada ao doce e à arte. Cresci fugindo das situações, pessoas ou lugares que me sufocavam. Quem consegue prender água de rio? Que beleza tem em castrar a liberdade de ser o que quiser? Chorei aos pés do espelho e pedi colo da Mãe mais doce e braba. Agradeci muitas vezes com rezas, quindins e cocadas em seu quarto ou em pé de árvores, por aprender a me virar no mei do mundo, conquistando dias felizes e pessoas especiais. Sabedorias que só se alcança vivendo. Meu corpo tatuado com muitos corações já denunciava qual Santa Nigeriana e qual rio antigo eu me banhava. Cresci no sertão cultivando memórias pelas cachoeiras e poços onde as onças mergulhavam. Toda doçura guarda uma fúria com olhos de coruja. Mas também, faz uma cocada de forno dedicada ao amor, cremosa e mole feito água. Para a receita, quebro primeiro os três cocos maduros. Coloco o rapador antigo entre as pernas e apoio bem as mãos na quenga do coco, cortando no ritmo forte e manso dos ombros como quem conhece bem o passo do ijexá. Misturo na bacia o coco ralado com açúcar, ovos e manteiga. Ralo um cadim de rapadura e imburana por cima pra dar cheiro e a pitada de iyo pra equilibrar os sabores. Rebolo tudo no forno dentro de uma forma até ficar dourado. A cor de ouro das filhas de Oxum reflete em tudo que elas amam, nas pessoas, nos lugares, nas comidas, nas palavras. Ela é quem comanda os ritmos do coração, aquela que ensina a usar o espelho como arma de defesa, inundando a casa de traidores, sempre curando e cuidando de si e do mundo. É Yabá do itã que todos duvidam que vencerá a guerra, mas que surpreende com a força e esperteza que as águas calmas resguardam. Que possamos cultuar nossas raízes distante de dogmas e opressões. E que essas junto a outras guardiãs, sejam fonte de liberdade e eternas nascentes de forças da natureza. Para transformar a realidade num mundo onde o poder seja do povo e para o povo. Resguardando nossas histórias longe de hierarquias e violências sociais. A bença das grandes Iyamis se faz presente na vida de gente de bom coração. Para a receita perfeita do acarajé e da cocada: compartilhe o fogão e o prato com muito amor e festa. Porque ilê de Mãe é sempre lugar de mesa farta!
fotografias “ O tabuleiro da Baiana” 1950-1960 por Marcel Gautherot
Pedras da doceira ou algumas sabedorias pra se compartilhar:
em dias especiais tem crônica na boca do fogão e as pedras preciosas que guiam nosso gosto pela cultura de comer nativa.
Gueledé além de festa e o nome das máscaras feitas de madeira que representam homenagens as Mães ancestrais, é principalmente a raiz das sociedades secretas matriarcais da mulheres da cultura Iorubá. O festejo é considerado Patrimonio Oral e Imaterial da Humanidade. A celebração anual é uma reverência ao legado feminino ancestral. Festejado principalmente através das danças, com o objetivo de homenagem e respeito ao poder das Grandes Mães protetoras da fertilidade e da natureza. Para conhecer mais indico a leitura do artigo “Parafernália das Mães-Ancestrais” e o vídeo da exposição virtual “Máscaras Gueledé” no Museu Afro Brasil.
para conhecer mais “Baile de mascaras Geledé” em 2022
O raio de sol Makota Valdina em uma fala inspiradora e cheia de sabedoria, sobre o tempo e a natureza. Pra sempre “Brilhe e brilhe intensamente!”
mini dicionário-dicumer
agogô: instrumento musical que significa “sino” em iorubá
ilú: também conhecido como “quebra-pratos” é o ritmo tocado para Oyá dançar.
ijexá: ritmo normalmente dedicado ao orixá Oxum, mãe das águas doces e rios.
àlùbósà: ou élùbásà”, significa cebola em iorubá, forma muito comum de se chamar o ingrediente nas cozinhas de terreiro do Brasil.
iyò: significa sal em iorubá, tempero essencial para a cozinha ancestral, mas que em alguns preceitos ou comidas de santo funfun (branco) não pode ser adicionada.
E pro corpo dançar na cozinha, uma relíquia direto de 1997, “Mãe de Samba” do Timbalada. Tente ficar parada ouvindo a versão dos Tincoãs “ Na beira do mar” banhada pelo coral e tambores do Timbalada, praticamente impossível. Ainda tem uma faixa com a musa Alcione. Minhas favoritas, quase todas, mas “Mãe Oyá” e “O ouro e a Madeira” meu coração transborda.
Pra findar, acarajé! Registro cheio de saudade da última vez que comi essa maravilha feito por Ieda na Praça do Ferreira em Fortaleza-CE. Chorando aqui de saudade.
Esse é meu primeiro 4 de dezembro de festa de Santa Bárbara sem fazer ou comer acarajé. Não achei feijão fradinho em Pedra Branca e apesar da vontade de comer acarajé tá imensa, a escrita foi o jeito de sentir o cheiro, o gosto, o calor e o feitiço da nossa cozinha ancestral, que nunca morre na memória e coração da gente.
Um xero lambuzado de dendê com cocada e até o próximo encontro.
Li esse texto com muito prazer <3
Que delícia saber disso ❤️ obg meu bem. Um xero