O Brasil e os Trabalhadores da Memória & Bolo de domingo
texto série por Davi Amaral e receitas da doceira selvagem.
O Brasil é um país jovem. Mas como todo jovem da atualidade, ele está repleto de síndromes, doenças e complicações sociais. Podemos dizer que nosso país teve uma infância traumática e sofre de crises de identidade na sua transição para a maturidade. Estes problemas são problemas concretos, problemas materiais e até mesmo políticos. Entretanto, parte de sua cura atravessa a falsa memória que ele cultivou e as falsificações que até hoje se acredita sobre o Brasil.
O brasileiro médio é filho de várias mães e de vários lugares do mundo. Poderíamos ser vários países em disputa pelos recursos naturais. Poderíamos estar em guerra pela Amazônia e pela água. Mas somos um todo.
Na fundação do Brasil, a primeira identidade a ser garantida foi a do traficante de mercadorias. As primeiras guerras do Brasil se fundaram no lucro exorbitante que transportar as riquezas naturais proporcionava às sociedades europeias. O Brasil ainda é hoje o banco natural do mundo. Temos as maiores reservas naturais e hidrográficas, mas, ao invés disto proporcionar uma nutrição rica e um bom desenvolvimento intelectual para a criança brasileira, os frutos reais foram exatamente os opostos.
Para se discutir o passado, o presente e o futuro, é preciso aprender com as experiências. Uma vivência sem um aprendizado final é uma experiência sem utilidade ou ainda inacabada. Não podemos permitir que os 500 anos de Brasil sejam apenas um relacionamento tóxico marcado em cartório e casório. É preciso ter memória do que é o Brasil.
Nossa educação média, seja de origem básica ou superior, não estimula a interpretação do que é este país chamado Brasil. A memória do Brasil se funda em interesses internacionais.
A primeira memória se dá através do interesse jesuítico ou colonial. Ou seja, dos estrangeiros definindo o que será o Brasil. Sua segunda memória é fruto do medo napoleônico da Corte Europeia Portuguesa. Brasil era e se destinou a ser a casa de praia ou de campo para a nobreza e realeza do norte global. Na queda Imperial e a criação Republicana, o Brasil criou seus símbolos “patrióticos”, mas esqueceu do dever que isso implica. Hoje já não contamos em uma só mão a quantidade de repúblicas e escândalos políticos que marcaram este Brasil “independente”.
O Brasil passa agora por períodos irreversíveis. Esta irreversibilidade se expressa no conflito cultural, na desigualdade econômica sufocante e na farsa do estado democrático igualitário que se estabelece através do simples voto. A luta pelo voto foi uma conquista baseada nos conflitos e manipulações decorrentes do estado deplorável que a condição de trabalho alcançou ao longo dos anos.
Para solucionar estes problemas precisamos reunir toda família brasileira e sul americana, preparar aquele café da manhã, a feijoada do almoço e o bolo do fim de tarde. O tema do encontro será “o que significa ser brasileiro no Brasil?”
Lembremos das várias tentativas de separar o Brasil, seja pelo preconceito, seja pelo desejo de explorar o outro, e aprendamos de uma vez só: o Brasil dividido é um Brasil colonizado. Se o Sul coloniza o Norte, se a natureza é desconhecida até pelos nativos, devemos olhar para nossa memória e perguntar o porquê disto.
Mas o que o Leite de Pedra tem a ver com isso?
A primeira preocupação do Leite de Pedra não é produzir doces. Isto a indústria já faz muito melhor, em maior quantidade e há mais tempo que nós. Nosso doce existe para acompanhar a doçura da sabedoria e para espalhar pelo sabor o valor da terra brasileira.
A cozinheira de doces não pode viver para sempre analfabeta. O agricultor não pode se aposentar por invalidez e ser tratado como indigente. O estudante não pode sair de seu ensino médio para limpar chão e ser humilhado pelo estrangeiro. O Brasil não pode ser só metade do que ele é. O Brasil precisa ser por inteiro.
Nós do Leite de Pedra temos o interesse de firmar, com várias mãos, a bandeira de um povo autônomo. Mas para isso ocorrer é preciso construir a memória brasileira. É preciso sentar, reabrir seus diários, refletir sobre suas cicatrizes, e pensar o que queremos ser quando crescermos.
A principal preocupação do Leite de Pedra está em eternizar a vontade do brasileiro de ser livre e feliz com a vida que tem. Mas para isso é preciso atingir a maioridade, seja em desenvolvimento, seja em maturidade do pensamento.
Assim, o Leite de Pedra não pode fugir do dever cívico de defender, preservar e construir a memória da história brasileira e sul-americana. O Leite de Pedra está cada vez mais interessado em agir na história brasileira, seja na terra, no céu e na doçura. Buscamos transformar o desejo sincero e corajoso de cada um em história Latina e Mundial. O Leite de Pedra é cria da terra das águas, da diversidade e da fertilidade. Ele é protegido pelas várias mães do mundo e não irá desapontá-las.
Davi Amaral.
29 de Abril, 2024.
Pedra Branca, Ceará - Brasil.
Esse texto faz parte de uma série Histórias do Brasil, assinado por Davi Amaral e feita pelo Arapuá que é a biblioteca e grupo de pesquisa em cultura, cozinha e doçaria popular do projeto Leite de Pedra. Os textos assinados por Davi, coordenador de pesquisa do projeto, serão publicados mensalmente aqui no blog.
O Bolo de Domingo
receita e memórias da cozinha popular e do comer doce nativo.
Na verdade não tem dia certo. O bolo é presença em muitas casas pelo nosso território. É comer doce que marca memórias e conta histórias.
Todo mundo tem uma receita de bolo infalível, mão na roda, que serve de coringa pra qualquer ocasião. Na casa da minha mãe o dia oficial do bolo era o domingo. E durante muitos anos eu fui a encarregada oficial de fazer o bolo desse dia que era sempre: um bolo fofo com calda de chocolate por cima ou um bolo de milho com coco, o favorito do meu pai.
No Brasil tem bolo pra tudo: o de comer com café, o de bater os parabéns, o de receber visita, o de perfumar a casa ou simplesmente o bolinho do desejo de adoçar o dia, feito do seu jeito ou por você ou pelas mãos de alguém que você gosta.
Na minha vida, a presença do bolo foi o que me levou a misturar a máquina de costura e os desenhos com o fogão, a escrita e as panelas. Foi tema da minha primeira tatuagem pra homenagear minha bisavó que era padeira e doceira no interior. Foi o bolo que me deu coragem pra recriar novos caminhos durante alguns anos difíceis. Foi minha porta de entrada para os estudos culinários, tornando os questionamentos e incômodos do trabalho de confeitaria e gastronomia em propósito de mudança.
Por isso, nada mais justo que fortalecer essas tradições compartilhando essas memórias com a minha receita favorita de bolo, pra tu poder recriar por aí do seu jeitim e a gente continuar adoçando a vida juntes.
Bolo Perfumado
2 ovos
200g de açúcar
100g de óleo
190g farinha de trigo
110g de leite
10g de fermento
pitada de sal
perfumes: puxuri, cumaru amazônico, imburana de cheiro, raspas de tangerina ou você pode fazer uma cachaça fusionada com cascas de fruta, plantas e especiaria, que é o que eu normalmente faço pra perfumar os bolos (em breve volto aqui com a receita da cachaça viu rsrs). Ou optar pelos clássicos e aplicar extratos ou pastas de baunilhas.
foto: cachaça com favas de baunilha na massa do bolo perfumado.
O preparo: primeiro e mais importante aqueça o forno e veja se você tem todos os ingredientes. Depois na cumbuca ou bacia, eu prefiro começar com os secos e depois ir colocando os molhados. Por último os perfumes. Mistura tudo muito bem. Se usar açúcar demerara, misture um pouco mais pra os cristais conseguirem se dissolver bem com os outros elementos do bolo. A massa fica entre o líquido e cremoso, que vai gerar um bolinho fofo e perfumado.
Unte a forma com óleo e uma mistura de farinha de coco com farinha de trigo. Leve ao forno médio por 30 a 40 minutos.
Ideias de textura, recheio e cobertura.
Na massa ainda crua você pode rechear seu bolo com doce de leite gelado, pedaços de chocolate amargo, sementes de cacau, pedaços de coco queimado, pipoca caramelizada, castanhas… uma infinidade de delícias da nossa terra.
Na tradição lá de casa a cobertura pede sempre uma calda de cacau com coco ralado por cima. Mas você pode variar: pode ser doce de cupuaçu, uma calda de tangerina, de araçá, de maracujá do mato, cobertura do que der vontade.
E o mais importante: coma bolo quente e divida com quem você gosta. Essa é sempre a parte mais importante de compartilhar uma receita.
“domingo e a saga do bolo que se derramou no forno porque eu butei numa forma pequena, dona katia fez o doce de leite hoje cedo e mesmo que ela tente o doce dela sempre fica branco e o bolo ela gosta bem fofinho tão fofo que eu aguniada doida pra comer tirei o bixo quente e ele se quebrou todim. Mas ninguém come inteiro neh, dizem. Por fim comi quente quebrado bem fofim e com o doce de leite da mulher que amo. 🍃” foto e texto memória do bolo de domingo na casa de mãe em 2020.
Em breve a versão vegetal dessa delícia e outras receitas da Pitanga Cozinha, onde criei muita comida caseira vegetal boa e justa como o inesquecível empadão de caju ou o bolo de banana com canela na folha da bananeira.
Obrigada por lerem até aqui. Até próximo texto e um xero com gosto de bolo de domingo.
Rafa Medeiros.