A escritora Carolina Maria de Jesus em sua cozinha
Mensagens vindas de longe. Dentro do envelope, sentimentos, sabores e também palavras escritas à mão com tinta no papel. Enquanto se escreve, algo cozinha no fogão, dividindo a atenção de cada parágrafo com o barulho e o cheiro que sai das panelas. Contar histórias é uma das nossas características mais humanas. Assim penso eu. Antes de toda a modernidade de conseguir enviar mensagens imediatas para alguém que está longe, seja por telefone ou hoje por teclas e telas de redes sociais, as cartas continuam guardando um valor especial na transmissão de informações e principalmente de emoções vindas dos lugares e pessoas que as escrevem.
Escrevo cartas desde muito jovem, da mesma forma que comecei a cozinhar muito cedo pra sobreviver. Confesso que a vida de escritora e cozinheira sempre andaram juntas e foi diretamente incentivada pela prática de enviar cartas. Aos doze anos, eu era a menina do interior do Ceará que escrevia cartas à melhor amiga que morava na capital Fortaleza. Os assuntos eram diversos: desde música, arte, literatura, até amores, angústias do futuro, sonhos e quase sempre, a saudade de estar próximo. Me lembro bem de uma das cartas que recebi de Estela, essa minha amiga da época, que tinha escrito junto “Uma oração as donas do inferno” da autora Clara Averbuck. Ela dedicou esse texto a mim e eu guardei essa carta por anos como um amuleto de sorte. Nessa época, eu era a especialista em fazer os bolos para os aniversariantes da escola e a encarregada de preparar o baião cremoso no almoço de casa.
Depois, aos dezessete, escrevi uma carta de despedida para a minha mãe quando fugi de casa em busca do meu maior sonho: ser livre. A justificativa da fuga também era a vontade de me tornar estudante de Artes, ingressando na universidade pública na capital. Para isso se realizar eu precisava ir embora de Pedra Branca. Na época, ninguém apoiava a ideia. Diferente da realidade dos homens da família, que ganhavam moradia e apoio financeiro de todos os familiares ao ir estudar fora da cidade. Para as mulheres, era mais fácil uma vida traçada por um casamento com o primeiro namorado da vida, uma carreira de trabalho como enfermeira ou qualquer outra opção que permitisse que eu continuasse a conservar os valores tradicionais do patriarcado. A jovem menina do interior preferiu desafiar o destino. Coloquei tudo na mala, que era um saco de carregar farinha de mandioca, escrevi uma carta de despedida e fui embora. Deixei um chocolate junto da carta escrita para amenizar o susto da minha mãe. Isso aconteceu a exatamente 18 anos atrás.
Anos mais tarde, entre idas e vindas nas estradas de sertão e mar do Ceará, a escrita e a cozinha me salvaram da fome, da solidão e dos amores não correspondidos. Trocava diárias e dormidas nas casas de amigos por trabalhos domésticos, atividades culinárias e poesias. Na época eu escrevia em blogs, já estudava e trabalhava fazendo doces por encomenda, era contratada como auxiliar de cozinha em restaurantes e participava de festas e saraus no bairro mais boêmio e universitário de Fortaleza: o Benfica. Nesse tempo, eu já tinha morrido e renascido muitas vezes. Já não era mais a mesma menina do interior que escrevia cartas, mas já começava a abandonar a escrita poética muito íntima e sangrenta, sobre a vida de ser mulher em Fortaleza. Quase publiquei um livro sobre isso. Peguei todos os textos online e imprimi para fazer a edição de forma manual. Tempos depois de serem engavetados, fiz uma fogueira com todos os textos, feito fênix que desejava renascer das cinzas, e queimei tudo.
Foi uma época de muitas descobertas boas, onde eu alimentei pessoas e criei laços de amizade que até hoje preservo com muito afeto. Fui cozinheira de muitos artistas, poetas, jornalistas, ativistas, professoras universitárias, filhas de santo, estilistas, agricultoras, trabalhadores, pessoas amigas da capital e do interior que foram essenciais no meu desenvolvimento como pessoa. Elas me ajudaram a acreditar na coragem e no amor de fazer o que gosta, mesmo com as dificuldades e golpes da vida. Assim, eu havia encontrado na cozinha um lugar de acolhimento para escrever e existir.
Aos poucos, toda comida de doce ou de sal, era oferecida junto das palavras. Os nomes dos pratos ou doces eram importantes, davam alma ao processo de cozinha e escrever completava o gosto que se sentia na boca e no coração. Era o tempero que não estava em nenhuma prateleira de mercado. Isso dava vida à ideia de se alimentar com histórias e também, de unir-se a outras histórias e pessoas através do comer. Não foi à toa que a sociologia e a antropologia da alimentação me cativaram tanto, me levando a outras sabedorias que completariam esse fazer, como a botânica, a biologia e o estudo das abelhas.
Passei a entender melhor a história da minha família e a forte tradição de cozinheiras e curandeiras a quem eu pertencia. Descobri que meu ofício de doceira já era tradição da minha ancestralidade, tanto por parte do meu avô que era Mestre de casa de rapadura e farinha, como da bisa padeira e doceira tradicional na cidade de Pedra Branca. Da mesma forma que a escrita pode preservar a memória, a comida segue o mesmo propósito de dar continuidade a essas tradições.
A escritora e doceira Cora Coralina em sua cozinha
Assim, o primeiro Clube da Carta Escrita deseja aprofundar essa prática de escrever e cozinhar, incentivando a leitura e a escrita fora das telas. Trazendo ao debate a realidade de outros territórios, junto da importância do registro das nossas histórias e aliada a prática coletiva de compartilhar ideias.
Nesse primeiro Clube o tema da Carta é: O que é ser cozinheira e escritora no Ceará? No texto acima, desenvolvi um pouco das memórias que inspiraram a escrita da carta dessa temporada e que está sendo enviada pelos correios, para pessoas queridas de todo o Brasil.
No envelope vai: 1 texto/cópia do diário da doceira com a carta temática escrita a mão, 1 dedicatória exclusiva para cada destinatário e 1 tempero surpresa que pode ser sementes aromáticas, bottons, imãs de geladeira, marca página e etc. A encomenda da carta é feita através do Projeto Leite de Pedra e custa 25R$ + postagem de envio (15R$ carta comum para todo Brasil ou junto da encomenda do doce Leite de Pedra.) Todo o valor da venda das cartas é destinado ao fundo de apoio ao projeto, para que possamos continuar nossas pesquisas, estudos e existência. Fica de livre decisão do destinatário a resposta da carta, mas desde já afirmo que irei amar receber seu retorno.
“Prólogo” do caderno Um Brasil para os brasileiros, publicado postumamente no livro Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, escrito por Robert M. Levine e José Carlos Sebe Bom Meihy (Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1994). Arquivo Carolina Maria de Jesus / Acervo IMS.
Nos últimos anos, recebi e enviei muitas cartas escritas à mão. Reli algumas recentemente e todas elas sempre me emocionam muito! Tenho a maioria dessas cartas guardadas comigo e elas foram a principal fonte de inspiração para criar esse Clube. Agradeço imensamente a oportunidade de continuar cultivando práticas que dão sentido à nossa existência. E espero que o compartilhar dessas memórias, possa incentivar cada vez mais pessoas a continuarem preservando e registrando suas histórias. Seja através da cozinha, da escrita ou de qualquer linguagem artística.
Obrigada por ler até aqui. Acabei atrasando o horário do envio de hoje por motivos de muito trabalho doméstico e na cozinha do Leite de Pedra. Nos encontramos no próximo texto, segunda, na Biblioteca Arapuá, para a leitura emocionante de “Mata Doce”.
ótima semana pra você, um xero e até já!
Rafa Medeiros, Pedra Branca Ceará 12 de Maio de 2025.
Os teus textos são fonte de inspiração que me abastecem de coragem e ajudam a cicatrizar as minhas dores. Obrigada por existir, Rafa!
Que coisa mais lindaaaaa!!!! Amei esse texto 🥹🥹🥹 sou sua fã, guria