Rapadura boa de comer e de pensar.
Vocabulário da comida popular e a agenda de maio da doceira.
Adocicada e intensa. A rapadura é um mundo infinito de possibilidades. Os tijolos, populares em dar sustança e energia às refeições, estão cada vez mais ausentes nas casas e cozinhas do Brasil. Se engana quem acha que rapadura é só “doce, mas não é mole não!”
Rapadura é doçura selvagem que não gosta de seguir regras. Costuma ser marginalizada por alguns ou silenciada por outros. Mas o que ela realmente gosta, é de ser livre e seguir sua essência: na espécie de cana que fez seu caldo, na terra onde foi plantada, nos agricultores que colheram e até na mão da Mestra ou Mestre que fez a moagem, tudo isso é transmitido no gosto e na experiência do seu comer.
Por isso temos rapadura mole, salgada, temperada, com amendoim, com coco, grande, pequena, preta e tradicional. Em cada região, um jeito de ser e de comer. Em cada sabor, uma tradição e história pra contar. Algumas rapaduras são brilhantes, outras ostentam no interior de si, seus irregulares cristais arenosos de açúcar bruto. Tem pra todos os gostos e tipos de derretimento na boca. A tradicional vem na cor mais amarelada com tons de verde escuro, quase como a cor do caldo da cana recém extraído da planta. Outras rapaduras tradicionais são mais na paleta cor de ouro e às vezes petrificadas de tão duras! Essas guardam uma doçura intensamente cristalizada e que costumam aguentar longas viagens sem fermentar ou danificar sua forma.
Já as mais escuras, com uma cor de mármore negro com pinceladas de dourado e quase sempre de fácil derretimento nas mãos, são chamadas de rapadura preta. Essa tem o gosto mais ácido, algumas com certa facilidade para desmanchar no paladar e para a fermentação, ficando com um gosto e cheiro meio alcoólico com o passar do tempo. Perfeita pra comer com queijo de coalho fresco. Em algumas regiões do Nordeste, são popularmente chamadas de “rapaduras mais apuradas”, pelo fato do cozimento do caldo da cana ser diferenciado da feitura da rapadura tradicional. A rapadura preta é uma entidade que salvou muita gente da desnutrição e das secas na caatinga. Também foi item importante na dieta do cangaço, onde eram carregadas dentro dos bornais junto de outros alimentos durante longas caminhadas.
Aprendi com as mais velhas sobre aliar a rapadura à alimentação, tendo como propósitos principais a cura e a história do povo. O xarope de eucalipto com limão e folha de urucum é feito na calda de rapadura, para curar a tosse do peito cheio e melhorar a asma. O cuscuz de milho com feijão de corda pode ser misturado com um pouquinho de rapadura ralada por cima, dando aquela energia extra antes de voltar para o trabalho na roça. Já o café cultivado na terra, pode ser torrado e moído junto com um pouco de rapadura, para facilitar na conservação dos grãos nos períodos mais úmidos e quentes. A moderação já está embutida na etiqueta popular do consumo do doce, afinal rapadura boa também é aquela que rende bem e dura muita história pra contar.
Assim, a rapadura ainda é um mundo a ser desbravado pelas cozinhas brasileiras. Apesar da sua importância para a doçaria e as culturas alimentares, ela sofre marginalização social e ameaças na alimentação popular, tanto pela crise climática como pela precarização da educação e falta de incentivo à manutenção do ofício dos produtores locais.
Para a escolha de uma boa rapadura de comer e de pensar é preciso:
1- Ter os sentidos atentos para observar as rapaduras, suas formas, seu cheiro e também para ouvir o que os comerciantes e nativos têm a dizer sobre elas;
2- Pergunte a origem do doce. De onde vem essa rapadura? Procure no rótulo, pergunte se as pessoas já provaram, se tem conhecimento dos produtores e como elas gostam de comer rapadura;
3- Cor e textura como norteador. Rapaduras mais amarelas claras e duras normalmente são muito doces e ótimas para receitas que exigem neutralidade e equilíbrio de sabor. Já as mais marrons e escuras, se ao tocar em alguma das suas pontas ela quebrar com facilidade, essa rapadura pode ser mais “apurada” dando origem a uma diversidade de sabores complexos nas suas receitas como salgado, ácido e amargo.
Para comer rapadura: basta quebrar pequenos pedaços com uma faca grande e degustar preferencialmente acompanhada de algo, pode ser desde uma boa castanha de caju ou aquela bela dose de cachaça caprichada.
Lembrete: escolha a rapadura pelo seu gosto pessoal e se aventure pela diversidade de sabores e histórias que ela carrega. Assim, você continuará preservando e fortalecendo o trabalho e a raiz alimentar da nossa cultura.
Agenda de Maio da Doceira.
Olá gente linda, tudo jóia por aí? Feliz com as pessoas novas que estão chegando por aqui, obrigada por seguirem o blog! Essa doceira sumida está de volta à programação de escritas. Meio travada nas postagens digitais, mas com vontade de dar vida às ideias que ficam guardadas no papel.
Nos bastidores da cozinha, eu continuo o malabarismo entre as panelas e os cadernos. Voltei nos últimos meses a escrever e enviar cartas escritas à mão pelos correios, para incentivar a leitura fora das telas. A caatinga aqui no Ceará suspira nessa época, seus últimos momentos da quadra chuvosa e da mata verde de clima mais ameno. Agora, toda primeira segunda do mês eu compartilho minha agenda de estudos e sazonalidades, entre outras novidades e experiências no campo e na cozinha. O Projeto Leite de Pedra segue firme e está com encomendas abertas. Quem quiser conhecer o catálogo da Safra Escrita e apoiar nosso trabalho é só clicar aqui.
estudos e escritas - o que virá nos próximos dias aqui no blog.
Dia 5 - Vocabulário da comida popular e a Agenda do mês.
Dia 12 - O que é ser cozinheira e escritora no Ceará? Clube da Carta Escrita.
Dia 19 - Mata Doce na Biblioteca Arapuá.
Dia 26 - “Sementes Nativas” Jornal Raiz Doce Primeira Edição.
Dia 31 - Carta Aberta nº6.
sazonalidades de maio - direto da nossa cozinha e bem viver.
1. Dia dos Trabalhadores e da Literatura Brasileira
5. Levantamento da Colheita do Café no Brasil
12. Lua cheia
13. Sorteio da Rifa do Leite de Pedra
17. Dia Internacional contra a Homofobia e Transfobia
20. Colheita do maracujá na caatinga em Pedra Branca
26. Fim da Safra Escrita
27. Lua nova
Nos encontramos no próximo texto. Obrigada por ler até aqui.
Até já,
Rafa Medeiros. 5 de maio de 2025, Pedra Branca, Ceará.
Adoro sua escrita e o doce das palavras que você escolhe. Já fiquei aqui sonhando com as cores e texturas das rapaduras! Viva você, Rafa, com suas sabedorias e a generosidade de compartilhar tantas lindezas com a gente. Nesse país tão grande, coisas corriqueiras para você são curiosidades encantadoras para quem vive num outro horizonte, clima, bioma... um beijo carioca dessa amiga que te admira muito!!